Cotidiano. Artigo: Tratamento discriminatório da mulher desde a infância

A discriminação e os maus-tratos começam ainda na infância. Em muitas partes do mundo, as meninas não concluem a escolaridade básica e encontram-se subnutridas. Nos países pobres, são maltratadas, exploradas, vítimas de preconceitos e sofrem as consequências da pobreza e das guerras em toda a sua dimensão.

Durante muito tempo, uma anomalia estatística intrigou os demógrafos. «Há falta de mulheres.» Falta de mulheres? Sim, em regiões imensas da Ásia, na Índia, no Paquistão, no Bangladesh, na China. Nas estatísticas, faltavam dezenas de milhões de mulheres. A proporção mulheres/homens, afirmam os especialistas na sua linguagem específica, é incompreensível. Estariam a esconder as mulheres, as meninas  aos recenseadores? Receariam as pessoas fazer a distinção entre os filhos e as filhas, nos países onde a demografia é controlada? Estariam os pais a declarar os filhos, e nem sempre as filhas? Afinal, são várias as línguas em que, curiosamente, a mesma palavra designa as meninas e os meninos…

Não, nenhuma destas explicações plausíveis se revelava, na verdade, acertada. A realidade é muito mais simples e os investigadores renderam-se às evidências. "Há falta de mulheres" porque elas morreram. Segundo os últimos estudos efectuados, estas mulheres "em falta" seriam cerca de cem milhões, ou talvez até mais. Parece estranho que uma tal realidade, um tal escândalo, não tenha até hoje saído do círculo restrito dos demógrafos e investigadores.

Cem milhões de mulheres em falta

Como explicar esta situação? Qual é a causa da morte de todas estas meninas rejeitadas pelas suas comunidades? Com efeito, elas morrem mesmo antes de terem nascido. A prática do aborto selectivo dos fetos femininos teve início na Ásia, na Índia em particular, logo que os meios de diagnóstico que permitem identificar o sexo da menina a nascer deixaram o mundo da medicina sofisticada e dispendiosa. A prática da amniocentese propagou-se como que em rastilho de pólvora até aos consultórios médicos mais básicos dos bairros de lata e de regiões remotas. Com a ajuda de uma pequena seringa, o médico retira algumas gotas do líquido amniótico que envolve o feto, líquido onde circulam células fetais que, depois de analisadas, permitem conhecer o sexo da futura menina.

A extensão desta prática, este desvio do uso da amniocentese — teoricamente destinada a diagnosticar deficiências —, acabou por alarmar as autoridades indianas que, em 1995, proibiram o referido exame nos casos em que o objectivo era identificar o sexo do feto. Mas como conhecer a motivação? E como aplicar uma tal proibição num país que ultrapassou já os mil milhões de habitantes? A Índia não proibiu em 1961 o uso do dote? E não baniu — da sua Constituição — a tradição das castas?… A prática da amniocentese realizada com este fim persiste, obviamente, embora de forma mais discreta.

Além disso, há ainda a radiografia, método menos preciso, sobretudo no início da gravidez, mas muito difícil de proibir e largamente utilizado com este propósito.

As meninas menos bem alimentadas, com menos cuidados que os meninos

Mas é certo que nascem, ainda assim, muitas meninas. Quando este nascimento representa verdadeiramente um drama, resta o infanticídio, o qual é também frequentemente praticado; um grão de arroz na traqueia, um biberão de ervas venenosas, um pouco de éter na roupa da cama… É tão frágil, um recém-nascido. E depois, um pouco mais tarde, para as sobreviventes, virá a elevada taxa de mortalidade. As meninas recebem uma alimentação inferior à dos meninos: servidas sempre depois do pai e dos irmãos, obtêm porções mais reduzidas, com menos proteínas, pelo que serão mais vulneráveis às infecções. Quando estão doentes, receberão menos cuidados que os meninos, irão ao médico ou ao hospital já num estado de doença mais avançado; terão também menos vacinas. Assim, o número de mortes entre as meninas será mais elevado e, mais uma vez, os responsáveis pelas estatísticas interrogam-se.

Todas estas razões contribuem para o facto de a proporção homens/mulheres na Índia ser a mais desigual do mundo. Enquanto nascem, em todas as comunidades humanas, 105 meninos por cada 100 meninas — uma proporção que se nivela no decorrer dos primeiros cinco anos de vida —, a proporção mulheres/homens que era já, há um século, de 972 mulheres por mil homens, no subcontinente não parou desde então de diminuir. De acordo com as últimas estimativas, este número mal ultrapassa hoje as 900 mulheres por cada milhar de homens. Este desequilíbrio é igualmente visível no Paquistão e no Bangladesh, sendo particularmente pronunciado na China.

A situação suscita, evidentemente, toda uma série de questões. As primeiras explicações avançadas eram de natureza económica e centravam-se na prática do dote. Originária das castas superiores do Norte da Índia, o referido costume expandiu-se por todo o país, desde as províncias do Tamil Nadu, no Sul, até aos estratos inferiores constituídos pelos camponeses mais pobres e pelos chamados «intocáveis». Pago pela família da noiva à família do noivo, o dote pode atingir quantias significativas, por vezes em dinheiro, outras vezes sob a forma de uma motorizada, uma televisão, etc. Além disso, não é pago de uma vez por todas. Será necessário, ao longo de vários anos, acrescentar outras quantias de vulto, ou então um aparelho de ar condicionado, um frigorífico, etc. Não é difícil avaliar a catástrofe económica que esta prática pode representar para uma família pobre, sobretudo quando são várias filhas.


«Não matem as meninas, abandonem-nas»

Para podermos compreender a situação, é necessário ir mais fundo, levando em linha de conta a cultura, as crenças. Na religião hindu, é o menino, o filho, que deve acender a pira funerária dos pais. Caso contrário, a alma destes últimos errará indefinidamente, reencarnando para sempre em seres anteriores, sem nunca poder atingir o nirvana, fim último da existência, isto é, o repouso eterno. Assim, o facto de se ter apenas filhas significa a condenação definitiva, para além da vida terrestre. Como fazer frente a uma tal representação? Como poderá alguém desejá-la para si próprio? Na Índia, existe um nome feminino que resume tudo, Nakusha, que quer dizer "não desejada"…

Este extraordinário desprezo pelo sexo feminino, que conduz àquilo que por vezes se chama de «ginocídio», assumiu em alguns Estados da União proporções particularmente alarmantes. No Tamil Nadu, são as próprias autoridades a atribuir a causa de infanticídio a 45% das mortes de meninas bebés. Lançaram, inclusivamente, uma campanha subordinada ao tema: "Não matem as meninas, abandonem-nas", tendo organizado um sistema de acolhimento de bebés. Sem grande êxito.

Apesar de maioritariamente muçulmanos, os dois países vizinhos da Índia, o Paquistão e o Bangladesh, não escaparam a esta visão tão denegrida das mulheres e das meninas, facto que em larga medida se deve à influência do hinduísmo no antigo Império das Índias. Tal como na Índia, as parteiras recebem o dobro da remuneração quando trazem ao mundo um menino. Como na Índia, o nascimento de uma menina é comunicado à mãe com grandes precauções e dá lugar a consolações.

Em algumas regiões do Paquistão — e mesmo no vizinho Afeganistão —, o nascimento de uma menina faz-se acompanhar de rituais de luto. Nos três grandes países do subcontinente, a regra é uma taxa de mortalidade de meninas muito elevada. A tal ponto que, segundo um estudo da UNICEF, «uma morte de uma menina em cada dez está directamente ligada à discriminação».

Nestes países onde, paradoxalmente, as mulheres exerceram em tempos as mais altas funções, a discriminação está presente em toda a sua existência, tornando-se frequentemente uma questão de vida ou de morte. É certo que os Indianos já não lançam as viúvas à pira funerária dos maridos, tendo o antigo sati sido abolido por ordem britânica. Mas as viúvas, expulsas das suas casas, afastadas dos filhos, vêem-se condenadas a uma vida de náufragas, impedidas de voltar a casar e, assim, sem a possibilidade de dar à luz um menino que as salvaria da decadência. «Na Índia», escrevia Henri Michaux, «convém não ser nem viúva, nem cão». Nem menina.

Na China, a política do menino único

A China, onde não se verifica nem a prática do dote nem a crença no nirvana, conhece, ainda assim, uma situação semelhante, em que a cultura desempenha também um papel importante. A preferência pelos meninos remonta à mais alta Antiguidade. No confucianismo, que continua bem presente na cultura apesar da modernização precipitada deste país-continente, são os homens, os meninos, sobretudo o filho mais velho, que asseguram o culto dos antepassados. Neste país, como na Índia, a menina deixa a sua família depois de se casar para se juntar à família do marido, pelo que a educação de uma menina se afigura um esforço inútil. A imposição do filho único, desde 1978, num país onde a preferência pelos meninos é tão marcada, tão antiga e tão aceite, veio decuplicar os esforços de eliminação das meninas.

O conhecimento do sexo por meio de exames destinados a detectar malformações, o aborto selectivo, o infanticídio e o abandono de meninas bebés em orfanatos que mais se assemelhavam a antecâmaras da morte assumiram tais proporções que as autoridades chinesas se viram obrigadas a reconsiderar a proibição de um segundo filho nas regiões rurais. A população rural obteve a autorização de conceber uma segunda menina se, por infelicidade, a primeira fosse uma menina. Nas cidades, a proibição manteve-se, sendo as mulheres obrigadas a afixar as datas das suas menstruações nos muros das fábricas, e vendo-se as desobedientes, mães de um segundo ou mesmo de um terceiro filho, privadas de direitos sociais, de abonos de família e do direito a escolarizar a ou as meninas não autorizadas a viver. Em relação a estas últimas — quando a eliminação física falhava ou não era uma opção — restava uma única solução à família: não declarar a menina. Assim, existem na China milhões de meninas que não têm existência legal.

Este cenário, imaginado desde o fim da Revolução Cultural (1966-1976), continua actual. A política do filho único é, mais do que nunca, o dogma oficial do Partido Comunista Chinês, que possivelmente gostaria de tê-la implementado mais cedo. No entanto, apesar dos esforços empreendidos, a população chinesa duplicou entre 1940 e 1980, tendo passado de 500 milhões a 1000 milhões de habitantes. Em 2003, atingia 1300 milhões de indivíduos e o número de mulheres «em falta» ultrapassaria, de acordo com diversas estimativas, os 50 milhões.

A Índia, onde todos os anos nascem 25 milhões de meninas, será dentro de 20 anos mais populosa que a China, onde nascem apenas 18 milhões por ano. Se não forem tomadas medidas — e nada poderá ser feito a curto prazo —, o desequilíbrio homens/mulheres será ainda mais acentuado nesta parte do mundo onde vive mais de um terço da população mundial. Dezenas de milhões de meninas deixarão de nascer ou serão mortas.

Em África, a excisão quase generalizada

Em África, a eliminação física das meninas parece nunca ter existido. As religiões — islamismo, animismo, cristianismo — não estabelecem uma ligação entre descendência masculina e vida no além. Contudo, uma outra forma de estigmatização, de fixação no corpo da mulher do seu estatuto de dominada impôs-se e persiste, contra ventos e marés. Numa imensa parte do continente, de Dacar a Djibuti, passando pelo Egipto, quase todas as meninas são mutiladas, os seus órgãos genitais externos são excisados e por vezes — no Leste — cosidos. A excisão e a infibulação são praticadas em inúmeras etnias, muçulmanas ou cristãs, embora nenhuma destas religiões tenha alguma vez prescrito tais procedimentos.

É certo que, nas duas últimas décadas, mulheres — geralmente juristas — e associações, por vezes até políticas, travaram uma luta corajosa, remando contra a maré que é este flagelo. Um flagelo que, para além da sua evidente carga simbólica, destrói vidas de mulheres, deixa inúmeras sequelas, por vezes gravíssimas, e causa frequentemente a morte de meninas recém-nascidas, devido a infecções e hemorragias impossíveis de estancar.

Esta luta começa, em alguns casos, a dar os seus frutos, como acontece por exemplo no Burkina Faso. Cerca de quinze países adoptaram legislações que proíbem estas práticas, uma proibição até à data pouco respeitada, mas importante — evidentemente — para aqueles que lutam para eliminar esta tradição. No entanto, um país como o Mali, por exemplo, onde a grande maioria das meninas é vítima de excisão, recusa-se ainda a criar legislação neste sentido.

Nenhum motivo de natureza religiosa para a excisão, mas mil crenças

Por que razão continuam estas práticas tão enraizadas quando os riscos inerentes estão comprovados? Uma vez que foi publicamente demonstrado que não têm qualquer fundamento à luz das duas principais religiões em questão, o islão e o cristianismo, por que motivo persistem?

Mais uma vez, torna-se necessário procurar mais fundo na cultura, num tempo anterior ao islão, anterior ao cristianismo, no arcaísmo de certos processos psicológicos. Trata-se aqui da repressão da sexualidade feminina, que assusta tanto, que inquieta tanto pelo seu carácter supostamente desenfreado, invasivo, insaciável.

Com efeito, mil e uma crenças justificam e caucionam a excisão e a infibulação. Foi dito à autora do presente ensaio que, se não fossem mutiladas, as meninas veriam o seu crescimento interromper-se; que se esta tradição não fosse respeitada, os gafanhotos proliferariam, a chuva deixaria de cair e, naturalmente, as meninas, insatisfeitas com a sua condição de mulheres, tornar-se-iam prostitutas. Os cataclismos que são atribuídos a um órgão tão pequeno! Quantas catástrofes causadas pelo sexo das mulheres…

A visão repressiva é clara, a fixação obsessiva pela virgindade constantemente reafirmada, e tudo conduz à morte simbólica da mulher na menina, à marca definitiva, ao ascendente do grupo sobre o indivíduo. As meninas, segundo me disseram, «é preciso acalmá-las».

Perto de 85 milhões de meninas não escolarizadas

A discriminação, para ser menos «vital», é a regra também no domínio da educação. Em muitas partes do mundo, desde há várias décadas, considera-se mais importante, ou até mais «legítimo», pôr na escola os meninos, em vez das meninas. Pois elas não são mais úteis em casa, onde é preciso tratar das meninas mais pequenas, dos doentes, dos idosos? Não são indispensáveis a trabalhar no campo ou nos mercados, ao lado das suas mães? Não poderia a escola dar-lhes ideias perigosas de emancipação, ou até de igualdade? Não iria a escola afastá-las do modelo ancestral, que dita que uma menina se torne, acima de tudo, esposa e mãe?

Além disso, a escola custa caro. É necessário abdicar da mão-de-obra gratuita que é uma menina, comprar livros, material, por vezes um uniforme; investir tudo num futuro que, tratando-se de uma menina, é muito incerto, uma vez que mais tarde ela acabará por se unir à família do seu marido.

E é assim que, segundo os números fornecidos pela UNICEF em 2003, 127 milhões de meninas em idade escolar não frequentam a escola. Quase dois terços destas crianças são do sexo feminino; esta discrepância, já evidente ao nível do ensino básico, acentua-se no secundário e mais ainda na universidade.

Este desequilíbrio, flagrante em muitas regiões da Ásia, é também muito marcado em África, nomeadamente na África Subsariana, e não dá sinais de melhoria, apesar dos esforços empreendidos ao longo das últimas décadas. Ao todo, as Nações Unidas identificaram vinte e cinco países no mundo onde vivem 64% das meninas não escolarizadas do planeta, entre as quais uma clara maioria de meninas.

No entanto, sabemos hoje em dia que não só a educação das meninas é, naturalmente, um direito fundamental relativamente à igualdade de tratamento, mas também algo de vital para o desenvolvimento. Foi estabelecida uma correlação directa, em particular graças a estudos realizados pelo Banco Mundial, entre produtividade — incluindo no plano agrícola — e o nível de alfabetização das mulheres. Saber ler, escrever e contar é aceder ao raciocínio dedutivo. É ter influência sobre as decisões, ter voto na matéria, acesso ao debate, em suma, reduzir a dependência. E poder ler uma notícia, ter um boletim de vacinas, uma curva de crescimento. A educação das meninas é, como sublinham os demógrafos, um dos meios mais eficazes de lutar contra a mortalidade infantil, contra as gravidezes indesejadas, contra a superstição. Estudos efectuados no Brasil apuraram uma correlação directa entre o número de meninas nascidas e o número de anos que as mães tinham passado nos bancos de escola. Quanto mais elevado o seu nível de escolaridade, menor o número de meninas que dariam à luz, um dado essencial nas sociedades onde a pressão demográfica se opõe claramente aos esforços no sentido do desenvolvimento. Nos países onde o número de filhos por mulher ultrapassa os cinco, como é o caso do Mali (sete filhos por mulher), ou Nigéria (oito), para não citar mais exemplos, apenas 16% das mulheres são alfabetizadas (Mali) e 9% na Nigéria. Nestes dois países, a mortalidade das meninas com menos de cinco anos ultrapassa os 20%. Segundo os médicos responsáveis pela saúde pública, os filhos não devem «ser muitos, nem vir demasiado cedo, ou demasiado tarde, nem com muita frequência». Para compreender este raciocínio e interiorizá-lo é necessário ter frequentado a escola…

O esforço a desenvolver neste campo é considerado de tal forma importante que a ONU criou uma «Iniciativa das Nações Unidas para a Educação das meninas» que regista as dificuldades e as iniciativas tomadas a nível global relativamente a esta questão. Também aqui, os avanços decisivos não poderiam ter tido lugar senão graças a verdadeiras decisões políticas, que tardam a acontecer e são limitadas pela fraca representação das mulheres nos governos e nos parlamentos.

E todas estas meninas trabalham

Que fazem, então, todas estas meninas que são privadas da escola? Elas trabalham. Constituem uma parte importante da economia do seu país, sendo muitas vezes exploradas. Trabalham nos campos, como empregadas domésticas, fabricam tapetes em Marrocos, no Paquistão, na Índia, cigarros, fósforos, pulseiras, executam mil e uma tarefas artesanais ou industriais, fazem bonecas destinadas às meninas dos países do Norte, material electrónico, etc.

Do elevado número de meninas trabalhadoras, a maioria são meninas, a começar pelas «pequenas criadas» em África, que trabalham como empregadas domésticas por vezes aos cinco anos de idade, privadas de toda a escolaridade, exploradas do nascer ao pôr do Sol, dormindo no chão da cozinha, trabalhando sem descanso. Verdadeiras meninas invisíveis, foram durante muito tempo esquecidas pelas estatísticas relativas aos pequenos trabalhadores. Na adolescência, muitas tornam-se ainda objectos sexuais ao serviço dos filhos da família, ou mesmo do pai. Quando ficam grávidas são, na maior parte das vezes, expulsas, sem qualquer meio de sustento facultado pela família que as explorou durante anos.

Vítimas da indústria do sexo

Os abusos sexuais cometidos contra as meninas e adolescentes não se às meninas, todos sabemos. Mas estas últimas são, por assim dizer, as vítimas preferenciais, infinitamente mais numerosas que os meninos. Sabe-se que a esmagadora maioria das violações e abusos sexuais de todos os tipos são cometidos no seio das famílias, e isto no mundo inteiro. Mais de 80% das vítimas foram, com efeito, violentadas por parentes, pais, tios, avós, ou «amigos da família», ou seja, por adultos que conheciam e em quem confiavam.

Existe ainda uma outra forma de abusar sexualmente das meninas e adolescentes, a qual consiste em organizar a exploração comercial dos mesmos. Mais uma vez, a grande maioria das vítimas pertence ao sexo feminino. Quantas são as adolescentes ou pré-adolescentes presas em bordéis, em Banguecoque, Manila ou Bombaim? Em Phnom Penh, é necessário preencher os serões dos turistas que não são atraídos apenas pelas maravilhas da arte khmer. No Norte de Madagáscar, não são só as magníficas praias de Nossy-Be que justificam a viagem, nem os souks de Marraquexe são a única atracção de Marrocos.

Actualmente, a indústria do sexo é uma das mais rendíveis do mundo, a par do tráfico de droga e de armas, três actividades fortemente ligadas entre si. A Internet deu, por assim dizer, um novo vigor à exploração sexual. Naturalmente, as vítimas devem ser jovens, tão jovens quanto possível. Muitos dos clientes vêm do outro lado do mundo, mas a maioria encontra-se no próprio país. Além disso, estes clientes que não revelam quaisquer escrúpulos em violar uma menina de dez anos, ou até menos, são extremamente cautelosos no que se refere à sua própria saúde. Quanto mais jovem for a vítima, pensam, menor o risco de serem portadoras do vírus da sida ou de outras doenças venéreas. Subestimam o talento dos proxenetas, que sujeitam as vítimas a uma intervenção que lhes confere uma falsa virgindade, conseguindo assim vendê-las a um preço mais elevado que acaba por rentabilizar a operação.

Há várias décadas que esta verdadeira indústria que se tornou a exploração sexual se vem desenvolvendo, primeiro na Ásia, onde a guerra do Vietname transformou Banguecoque, base dos combatentes, num bordel gigantesco, tendo-se-lhe seguido Saigão. Nas Filipinas, onde as mesmas causas produziram os mesmos efeitos, este comércio tinha sido «lançado» pela presença de enormes bases militares americanas no Pacífico. A procura começou por se orientar para vítimas jovens, depois extremamente jovens, e finalmente para meninas. Assim, assiste-se nesta região, literalmente, ao comércio da carne fresca.

As meninas quatro vezes vítimas da guerra

Os pretensos turistas substituíram os militares e esta exploração estendeu-se hoje em dia a numerosas regiões do mundo, tendo atingido a Europa de Leste e determinadas zonas de África. No continente negro, a guerra, melhor dizendo, as guerras contribuíram decisivamente para que o comércio sexual alastrasse, tendo inclusivamente chegado aos campos de refugiados onde os mais pobres se prostituem ou prostituem as suas filhas, a troco de um bidão de óleo ou de um saco de farinha.

Como seria de esperar, a América Latina não foi poupada a este fenómeno: exploração interna, procura das jovens prostitutas pelos negociantes de ouro, pelos responsáveis pela exploração florestal, pelos poderosos de todo o tipo, aqueles que pilham as favelas à procura de meninas para comprar, ou para roubar, «turistas» de uma espécie muito particular, no Brasil, nas Antilhas, nomeadamente em Cuba, na República Dominicana, em quase toda a zona das Caraíbas.

Em todos estes lugares é a pobreza, a pobreza extrema, que faz das adolescentes as presas eleitas dos exploradores. No Camboja, onde ainda nem sararam as sequelas da loucura dos khmeres vermelhos, mais de um terço das prostitutas, isto é, mais de vinte mil, têm entre 12 e 17 anos.

Com efeito, nada mais eficaz que a guerra para desestruturar uma sociedade, arruinando o respeito que merece a infância e transformando os mais jovens em objectos sexuais, em carne para canhão. As meninas são por quatro vezes vítimas da guerra: perdem a vida, são feridas, mutiladas; são privadas daqueles que amam, a começar pelos pais; a guerra destrói tudo aquilo de que precisam para viver e crescer — escolas, dispensários, alimentos; são expulsas do seu país, da sua terra, reduzidas a refugiados. A guerra pode ainda fazer das meninas soldados, arruinando nelas o próprio sentido das suas vidas.

Muito se escreveu, nos últimos nos, a respeito das meninas-soldados, e é essencial que a opinião mundial se sinta alarmada face à monstruosidade que é o recrutamento forçado de meninos de 10 ou 12 anos, enfiados em uniformes demasiados grandes para o seu tamanho, na posse de armas que não são brinquedos, drogados, vestidos para matar e para torturar.


As meninas como escravas sexuais durante a guerra

Pouco foi dito, pelo contrário, acerca das meninas transformadas em solda­dos, em escravas sexuais dos militares, essas meninas raptadas, roubadas nas suas aldeias, como acontece por exemplo no Norte do Uganda ou em várias outras regiões de África. Segundo o relatório de 2005 da UNICEF, em cerca de vinte países, ao longo da última década, as adolescentes foram raptadas e forçadas a participar em acções de guerra 3.

Por vezes, estas adolescentes são «dadas» ou vendidas pelos próprios pais, como forma de pagamento de uma espécie de «imposto». E o que se verifica na Colômbia, tal como em tempos aconteceu no Camboja. Pode também dar-se o caso de elas se juntarem voluntariamente a um qualquer grupo armado, julgando aí encontrar protecção e ajuda material. Nesses casos, a desilusão é terrível.

Mas o mais frequente é serem raptadas e vítimas de uma tremenda brutalidade, como acontece no Uganda, onde o «Exército de Libertação do Senhor» pilha o Norte do país a partir das suas bases estabelecidas no vizinho Sudão. Este «exército» efectua os seus ataques de noite, aterrorizando as populações de tal forma que os mais jovens, os adolescentes, em particular as meninas, abandonam muitas vezes as aldeias procurando refúgio nas cidades. Estes «refugiados da noite» atingem actualmente várias dezenas de milhares, dormindo onde podem, em igrejas vazias, paragens de autocarro, nos passeios, e regressando a casa de madrugada.

Eles sabem o que os espera se tiverem a infelicidade de ser raptados. Obrigados, sob pena de morte, a participar em actos de violência extrema — por exemplo, a torturar e a matar outras meninas, nomeadamente aquelas que tentaram fugir —, são em seguida forçados a participar nos combates. As meninas sofrem o mesmo tratamento dos meninos, mas a sua situação é além disso agravada por uma autêntica escravatura sexual. Este tipo de violência assumiu tais proporções que em Maio de 2004 uma parte da população tinha desertado da região, onde o número de desalojados atinge actualmente l,6 milhões, dos quais 80% são mulheres e meninas. Na Europa, quem se preocupa com o Norte do Uganda, um país constantemente apresentado como um modelo de desenvolvimento? Quem conhece o «Exército de Libertação do Senhor», cujos dirigentes recebem ordens directamente de Deus Pai?

Abalar a montanha de injustiças

As meninas, as adolescentes são, assim, particularmente vulneráveis em tempo de guerra, que é também um tempo de violações sistemáticas, pretendendo-se aliar a humilhação à violência, desmoralizando o adversário, deixando se possível meninas nascidas destes actos de violência.

Algumas das meninas raptadas em pequenas regressam dos combates com «filhos da guerra» que contribuem para o seu estigma. Muitas vezes rejeitadas pelas famílias e pela comunidade por terem dado à luz um filho do agressor, sofrem a exclusão, a miséria, a vergonha da violação, a culpabilidade de terem servido o inimigo, ainda que como escravas. São raros os programas de desmobilização das adolescentes-soldados, e muito poucas beneficiam de um rastreio seguido de um tratamento da sida.

Com efeito, a sida é mais um factor a juntar aos dramas que se vivem nas regiões em guerra e nas zona mais pobres do mundo, a começar pela África Subsariana. A feminização da pandemia no continente negro é particularmente grave: cerca de 60% das pessoas infectadas pelo vírus da sida são mulheres ou adolescentes. São cada vez mais frequentes os casos em que meninas jovens se tornam chefes de família por os seus pais ou avós terem sido dizimados pela doença e, na esmagadora maioria dos casos, esta situação obriga-as a abandonar a escola e todo o projecto de futuro.

Naturalmente, um tal panorama não pode ser encarado com optimismo. Principais vítimas da discriminação, as meninas estão muitas vezes elas próprias convencidas da legitimidade desta prática, convicção que irão, por sua vez, transmitir. Trata-se de um círculo vicioso: a discriminação perpetuar-se-á sem suscitar reacções, as adolescentes tornando-se mulheres e continuando incapazes de se insurgir contra a situação.

A não ser que… a não ser que a escola, o livro, a transmissão de um outro modo de ser e de pensar venha perturbar, desestabilizar, abalar esta montanha de injustiças. Tudo é possível, como provam aquelas que, de meninas subjugadas, conseguiram vencer mil obstáculos para se tornarem mulheres livres.

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